quarta-feira, 10 de junho de 2009

Crônica de cachoeira

Para Alex, Jéssica, Raíssa e Jamira

Eu nem iria. O audiovisual já deveria estar pronto ou semi-pronto. E fazer as tomadas em uma casa de farinha, pegando também a retirada da mandioca do solo não me fazia muito sentido nesta altura do campeonato. Tentei, inclusive, anteriormente sob proposta, eliminar o audiovisual do projeto, enfatizando apenas os vídeos de um minuto. Mas os alunos pegaram um pouco de energia em realizar e eu resolvi apostar. Fizeram um contato e decidi, então, levá-los para Maranguape no meu carro.

Todos no carro e o equipamento: seguimos às 14:15. O caminho não se mostrou facilmente e o Maranguape, muito grande, de zonas metropolitanas, rurais e afins foi se complicando de trajeto. As estradas, por conta delas mesmas e das chuvas, chegaram a desaparecer da geografia entre buracos, poeira e silêncio. Havia um sol meio dúbio que cobria e encobria a paisagem. Ao mesmo tempo em que facilitava a leitura do verde, desesperava de sentido a viagem.

Perguntamos inúmeras vezes aos passantes, ciclistas e motoristas como chegar a nosso destino. A obrigatoriedade da CE-065 (não se tinha conhecimento até então, aliás, as rotas poderiam ter sido facilitadas se soubéssemos previamente a estrada...) nos fez guiar em direção à Palmácia. Antes disso e depois de reflexões multiplicadas sobre a razoabilidade da empreitada de andamento e lama, chegamos, muito tempo depois, ao distrito de Cachoeira.

Lá estaria o nosso contato. Uma professora que nos passou para uma auxiliar, que entrou no carro e nos guiou até a casa de seu Manoel, que não estava. Esperamos, assim sem palavra, o homem. Na tentativa de encontrar algo, na tentativa de fazer valer a pena a viagem, cada um se segurou em suas impressões, como de praxe.

A paisagem não me deteve, talvez porque ainda estava com o percurso na cabeça, de como seria a volta, de que faríamos certamente parte do trajeto de volta no escuro. Isso me ressoava a cada momento sem o homem que seria nosso anfitrião por ali.

Antes dele chegar avançamos sobre a casa de farinha e se começou a fotografar, se dirigir a filmagem, fazer algumas tomadas. Eu saía e entrava, deixando os alunos sós, fazendo e refazendo as coisas. A auxiliar da professora também estava do lado de fora com cara de ‘cadê ele?’. Perguntei sobre o lugarejo, ela respondeu, nada de mais. Olhávamos a estradinha com sol baixando. No caminho vinham muitos alunos da escola, andando com aquelas brincadeiras, gritinhos e rotas desalinhadas. Um deles veio ao meu encontro e me pediu a benção. Segurei-lhe a mão sem saber o que fazer. Ele pediu de novo, eu o olhei mais detidamente, beijei-lhe a mão. Mas ele exigia mais que isso exigia uma palavra: Deus te abençoe, saiu, fazendo eco...

Depois pensando, acho que ele queria me trazer para o lugar, me aterrissar de palavra. O homem chegou, finalmente, apertei-lhe a mão, me apresentei, apresentei os alunos e continuava a entrar e a sair da casa de farinha. Estava a contragosto, estava com esse incômodo arredondado de insignificância.

Seguimos, então para a plantação de mandioca. Longe. Fomos a pé, pois o caminho não se poderia fazer de carro. A caminhada pareceu, como outras coisas, novamente sem razão de ser. O seu Manoel falava um pouco das águas, da estrada, das plantas e alguma coisa no lugar começava a fazer sentido pra mim.

Havia algo que dotava o lugar de importância, que não soube explicar, aliás, que ainda não sei. Talvez a natureza exorbitante, que se apresentava ao circundar o açude me fez relaxar e começar a apreciar aquela visita à Cachoeira. Desacelerei, olhando as coisas, seguindo aquele homem.

Chegamos enfim, à plantação de mandioca. Fotografias, tomadas e nos chega o seu Agostinho, usando botas e com uma voz forte cumpria com prontidão as indicações de posição, ação. Outras tantas vezes. A mandioca retirada nos foi presenteada, assim como aquela tarde.

O que me chamou mais atenção foi a generosidade daquelas pessoas, tão íntegras, tão integradas, disponíveis a nos dar uma dose razoável de existência.

Saí com o tempo distendido e o entardecer em alto curso. Não tinha palavra, não tinha mais pressa. Aquela seqüencia de eventos me devolveu a uma operação inusitada de comunhão com o mundo.

Antes de sair, seu Manoel quis me mostrar a sangria do açude. Na parede dois pescadores detinham a linha do tempo. Me abaixei e molhei a cabeça. Olhei a água que sobrava do açude. Silêncio e água, silêncio e água. Os pescadores continuavam em delicadeza a solenidade da espera. Prometi regressar com mais calma.

Não sei ao certo, mas a vida se desprendeu.

Voltei menor do que fora, me diminui na plena natureza do ocorrido. A lama não me faria mais empecilho de viagem, nem os buracos, nem o tempo, nem a noite. Talvez tenha conseguido renovar a ideia sempre esquecida da presença de uma poesia mínima que nos (des)informa a importância das coisas.

Ricardo Rigaud Salmito (junho 2009)


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